Jussara Lucena, escritora

Textos

O vidreiro

Carl Staklar fazia os últimos ajustes antes de acionar o dispositivo. A ciência não seria a mesma depois da experiência. Mal podia esperar pela próxima reunião da Academia e olhar nos olhos dos descrentes e do jornalista que o ridicularizou.

O mundo era uma efervescência de descobertas. O telefone havia sido aperfeiçoado por Graham Bell, Tesla conseguira a primeira transmissão sem fio e disputava com Edison a Guerra das Correntes. O mais pesado que o ar estava prestes a voar.

Foram cinco anos de intenso trabalho no velho galpão empoeirado e cheirando a cinzas. O calor do forno e da caldeira deixavam no seu corpo as marcas das várias tentativas de conseguir o material perfeito. A rotina se tornava suportável com a ajuda de Victor, seu assistente, que além de um cientista era um ótimo cozinheiro. A comida diminuía um pouco a ansiedade dos dias de confinamento.

- Mestre, gostaria que eu preparasse algo antes do teste?

- Obrigado, Victor, mas eu não conseguiria mastigar algo neste momento.

- Seu pai sentiria muito orgulho, Senhor!

- Preciso que dê tudo certo. Usei o dinheiro de toda uma vida de trabalho dele. Transformei a fábrica em meu laboratório. Me lembro do dia, um pouco antes de sua morte, em que ele me presenteou com o livro de Júlio Verne e disse: “Carl, um homem de sucesso precisa ter visão de futuro. Este homem possui este dom e coloca no papel uma visão diferente sobre as potencialidades da ciência, do poder criativo e realizador do ser humano”.

- Vai dar certo! Nunca conversamos sobre isto, aliás, conversamos pouco, trabalhamos muito, mas tenho uma curiosidade: qual foi o livro de Verne e o que despertou o seu interesse pela ciência?

- Quando li Vinte mil léguas submarinas foi como se algo iluminasse meu pensamento. O Nautilus possuía uma fonte de energia inesgotável e baterias capazes de acumula-la. A solução de Nemo não me parecia possível. Verne era um escritor, não um cientista. Assim, apesar de brilhante, não conhecia certos aspectos técnicos. Eu me tornaria o cientista que ele não foi. O Capitão Nemo tirava das águas, do mundo submarino pouco explorado, tudo o que precisava.

Percebi que em nossa vida terrestre não nos damos conta de que no ar, na atmosfera, embora invisíveis estão elementos vitais para o nosso futuro. Tesla também havia chegado a mesma conclusão.

- Agora sim! Me lembro de algo que o senhor havia resmungado por diversas vezes: “é trágico imaginar que para nos comunicarmos precisamos estar presos a um cabo de telégrafo”. Foi a cena onde o capitão Nemo dizia que para deixar o Nautilus num escaler usava um cabo de cobre preso entre a nave e o barco, não foi?

- Isto mesmo.

- Eu também li Vinte mil léguas submarinas e o que me impressionou foi a descrição da cena onde era possível ver, mesmo em grandes profundidades, o oceano através do vidro.

Eu pensava: como o vidro poderia suportar tanta pressão?

- Pois foi nesta cena que eu busquei a resposta para o meu projeto. Lembre-se que neste galpão funcionou a fábrica de vidros do meu pai.

- Eu durmo, acordo e passo o dia trabalhando os cristais. Só não havia ligado tudo isso a história de Verne. No começo eu não entendia como um isolante elétrico poderia ajudar a compor uma fonte inesgotável de energia.

- Não há fonte inesgotável de energia, nem um moto-contínuo perfeito. Minha máquina será capaz de acumular e gerar energia com um pequeno impulso. Usará as forças eletromagnéticas presentes no universo para alimentá-la. – disse Carl como que tentando tocar algo invisível no ar.

- Vejo que guarda segredos, não confia em mim Mestre.

- Confio. Apanhe na gaveta de minha mesa um pacote. Passei o último fim de semana organizando meus documentos, minhas anotações. Preciso que guarde com você.

- Por que o senhor mesmo não guarda?

- Quando eu acionar o dispositivo, preciso que você esteja longe daqui caso algo dê errado.

O aparelho de Carl possuía o formato de um grande obelisco de cristal quase que maciço. Em sua base, diversas camadas de vidro e metal fundidos em blocos e com dispositivos internos interconectados por fios do mesmo metal transparente. No centro, um pequeno motor, aparentemente simples, com um rotor e pequenos sensores magnéticos. Ao lado do motor, algumas bobinas e pequenas peças que lembravam o rádio de Marconi. Tais peças restavam num cubo totalmente fechada a vácuo, o que permitiria ao motor sofrer o menor impacto possível da força de atrito.

Envolvendo a cúpula central, havia uma esfera com dois anéis que, em movimento, geravam um campo magnético capaz de isolar a ação da força da gravidade. Tudo permitindo a menor perda de energia nos movimentos.

- Mas mestre, o que pode dar errado?

- Pense, Victor! O aparelho foi concebido para concentrar e fornecer energia. Se o material isolante não for resistente o suficiente para suportar a alta temperatura e a energia gerada, o vidro poderá se partir e cada pedacinho se transformará num projétil.

- Então, porque não isolamos o aparelho com algum metal mais resistente?

- Para evitar qualquer interferência do metal. Lembre-se que o aparelho no centro é um receptor de ondas eletromagnéticas, que captura as ondas vinda do Sol e da própria Terra, precisa de passagem livre para ser recebido, decodificado e transformar as ondas em comandos para o motor, que devolverá as ondas concentradas, fazendo-as multiplicar por infinitas vezes a energia recebida, como se fosse o calor do próprio astro rei.

- E como pretende controlar, comandar a intensidade dessa energia?

- Lembra-se do controle remoto de Tesla?

- Sim, mas se era realmente um controle remoto, só comandava direções. Era muito simples. Para controlar essas ondas precisaríamos de um cérebro artificial!

- Teremos um cérebro natural! – afirmou Carl.
Victor permaneceu em silêncio. Por um instante pensou que seu mestre era, como diziam, um cientista louco, uma espécie de Dr. Frankenstein, misturando matéria viva com uma máquina.

- Fico aliviado por não contar com o meu cérebro, já que pediu que eu me afaste durante o teste final. Mas o senhor pretende retirar o cérebro de alguém?
- Vá até o armário, nos fundos da oficina. Lá há uma caixa, traga-a.

O ajudante atendeu à ordem, preocupado com o que encontraria. Pensou numa alternativa de fugir dali, caso o que encontrasse na caixa fosse o que ele estava imaginando. Carregou a caixa com um misto de medo e nojo e depositou-a sobre a bancada.

- Vamos, abra-a! – ordenou Carl.

Victor soltou os dois fechos, retirou a tampa de olhos fechados e os abriu lentamente. Aliviado, retirou uma espécie de capacete, com algumas bobinas e dispositivos desconhecidos para ele, tudo soldado na parte superior do objeto.

- Que susto, senhor! Mas como um elmo o conectará com a máquina?

- E, se eu lhe disser que o nosso cérebro é capaz de gerar energia suficiente para causar uma explosão?

- Eu não acreditaria.

- Gosto da sua sinceridade, Victor. Todo o organismo humano é movido por impulsos elétricos, comandados a partir do cérebro. A energia cerebral é transmitida para o meio externo através de ondas, em várias frequências, dependendo do estado de consciência cerebral. Isto conectará minhas ondas cerebrais aos comandos da máquina.

- Me perdoe, senhor, eu me dedico a física, às ciências exatas, não tenho como compreender isso.

- Lembra-se de que algumas vezes lhe pedi silêncio e me isolei em minha sala?

- Pensei que se encontrava com sono e descansava.

- Eu estava me concentrando, reduzindo a minha atividade cerebral, buscando frequências mais baixas, treinando o meu cérebro para o processo.

- Sendo prático, senhor. Caso algo dê errado hoje, como eu retomaria um projeto assim, com algo em que não acredito?

- Nas minhas anotações há mais informações a respeito. Também há o endereço de um médico francês, que mora na Terceira Avenida. Ele trabalha com sessões de hipnose e poderá ajudá-lo.

- Não seria melhor que eu procurasse um monge budista?

- Não zombe, Victor. Embora muitos não reconheçam, isto também é ciência.

- Eu não queria ser indelicado, mas me falta fé!

- Então, não percamos mais tempo!

- Mestre, uma última pergunta, é possível?

- Faça-a!

- Seu pai trabalhou durante tantos anos na fábrica de vidros, muitos sopradores trabalhavam aqui também. Nestes anos o senhor descobriu mais sobre o vidro que nos últimos quatro mil anos. Porque não investe o dinheiro que lhe restou numa nova fábrica e transforma tudo numa grande fortuna? Seria reconhecido como um revolucionário na indústria de materiais, sem correr riscos.

- Também pensei nisso. Num futuro não muito distante o mundo será feito de cristais. Hoje tenho três motivos para o meu projeto: mostrar aos críticos do que sou capaz; realizar um sonho de juventude e conquistar o coração de certa pessoa. Não penso em dinheiro ou fortuna.

- Sempre o vi como um homem frio, de poucas emoções ou sentimentos.

- Quem sabe seja uma forma de proteção, meu caro Victor.

- Quanto a pessoa a conquistar, é a jovem Rose, professora do Instituo de Artes, não é?

- Como sabe?

- Nas últimas duas vezes em que cruzamos com ela, o senhor quase acidentou-se. Na primeira vez torceu o tornozelo virando o pé na guia e por pouco não foi atropelado por um automóvel e na segunda vez o senhor deu de cara com o poste.

- Fico bobo na presença dela, não é?

- Todos ficamos na presença de uma bela mulher, senhor!

- Me imagino perdido entre aqueles cabelos ruivos.
Carl parou por alguns instantes, como quem ouve a melodia do instrumento, imaginando os dedos da jovem dedilhando o velho piano do teatro na apresentação de Natal. Ela indiferente a existência dele.

- Será que ela leu a primeira página do Diário? – questionou Victor.

- Quem não leu? Por isso preciso mostrar que estão enganados. Assim, quem sabe, Rose me perceba em sua vida. Não com um louco ou um bruxo. É incrível, mas o Século XX estava batendo às portas do mundo e quando não se consegue entender ou explicar determinado fenômeno confunde-se a experiência com magia ou feitiçaria.

- Creio que eles tenham algum motivo para isso senhor. Eu mesmo...

- Já sei Victor. Espere, depois me julgue. A edição de amanhã do Diário trará a chamada: “Carl Staklar, o Mago do Novo Milênio, põe fogo em Nova Iorque”.

- Pretende colocar fogo em Nova Iorque?

- Não, meu caro. Só reproduzo o exagera das manchetes. A cidade apenas será iluminada, um pouco mais do que o de costume.

Fizeram os últimos ajustes. Victor conectou os últimos cabos e ajudou Carl com o capacete.

- Mestre, posso abraça-lo?

- Não precisamos de despedidas. Obrigado pelo apoio. Tudo isto está me deixando com fome. Volte logo! Quem sabe dê tempo para que você me prepare um lanche antes da chegada da multidão.

Victor saiu a passos rápidos. Queria muito poder observar o funcionamento, o teste final da máquina, entretanto, não iria contrariar as ordens do mestre. Como combinado, posicionou-se depois da cerca da fábrica, no outro lado da rua, segurando o pacote com as anotações de Carl.

No interior da fábrica, Carl acionou os dispositivos e iniciou a série de comandos. O receptor no interior do obelisco de cristal começou a receber os sinais: a pequena lâmpada ao lado da principal bobina ascendeu-se. Lentamente o motor começou a funcionar. As ondas eletromagnéticas fizeram o rotor movimentar-se e aos poucos a energia produzida começou a inundar o dispositivo. Era como se toda a força gerada se concentrasse no compartimento que envolvia o cérebro da máquina. Carl tocou o obelisco para verificar a temperatura. Tudo permanecia perfeitamente isolado. Remotamente comandou a conexão com o cabo condutor externo, que se ligava a uma máquina que acionava o alto forno da fábrica de vidro. A energia elétrica que substituía o carvão do forno aqueceu a massa e mais vidro se derramava nos moldes previamente dispostos. Carl sorria.

Distante, Victor percebia a luminosidade do obelisco que iluminava as pequenas janelas na cobertura da fábrica e se expandia ainda mais pelas placas de vidro instaladas na cobertura. Provavelmente toda Nova Iorque estaria procurando a origem da luz projetada contra as nuvens altas que cobriam parcialmente o céu da cidade.

Tudo ia bem, até o momento em que Carl percebeu estar recebendo sinais através de seu capacete. Os sinais, cada vez mais fortes minavam suas forças. Ele tentou acionar o dispositivo que desligaria a máquina, o cabo que fazia a ligação rompeu-se internamente à peça de cristal. O rotor girava agora numa velocidade indescritível e a energia parecia concentrar-se ainda mais.

Não houve tempo para a expressão de uma única palavra saída da boca do cientista. Um clarão tomou conta de todo o espaço e a fábrica foi pelos ares. Victor esboçou uma fuga. Não chegou a deslocar-se e foi atingido pelo impacto que destruiu muitos quarteirões em cada direção a partir do obelisco.

No dia seguinte Rose segurava nas mãos um exemplar do Diário e a manchete da primeira página era a profetizada por Carl Staklar. Uma lágrima escorreu em seu rosto, lembrando do sujeito que assistia o seu concerto de Natal boquiaberto, a mesma expressão que se repetiu em alguns rápidos encontros nas ruas de Nova Iorque.



Texto que fará parte da Antologia digital Teslapunk promovida pelo escritor Maurício Coelho e Editora Madrepérola.

Adnelson Campos
26/12/2016

 

 

site elaborado pela metamorfose agência digital - sites para escritores